O Islã e o estado na Ásia Central
Desde o colapso da União Soviética, o espectro do extremismo religioso tem assombrado a agenda política ao que concerne à Ásia Central. Temores da disseminação da militância islamista para a região e a “radicalização” de sua população moldaram o pensamento sobre a segurança tanto entre os profissionais ocidentais e em governos da Ásia Central. Isso é altamente problemático. Enquanto que grupos extremistas de fato existam, o foco sobre o extremismo e a militância é, não obstante, mal aplicado.
Entre os especialistas ocidentais, “discursos de perigo” são frequentemente baseados em pouco conhecimento local e envolvem uma projeção de compreensões do Islã em outras partes do mundo aplicadas sobre a Ásia Central, ignorando a história da própria região. Para os regimes da Ásia Central, tais discursos são úteis para polirem suas credenciais secularistas e colocá-los no lado certo da guerra global contra o terrorismo. Esses discursos lhes provêm com uma linguagem em comum para usarem com os governos ocidentais e think tanks, mesmo se o limite deles para definir o extremismo seja extremamente baixo.
Discursos de perigo
A prevalências desses “discursos de perigo” no Oeste é ainda mais irônico dado que durante a Guerra Fria o Islã era amplamente visto como um antídoto ao comunismo. A invasão soviética do Afeganistão e a subsequente guerra ali trouxe essa questão à linha de frente. Vários livros discutiram a ameaça que o Islã e os muçulmanos poderiam representar ao estado soviético, e a Agência Central de Inteligência (CIA) pensava que os muçulmanos “poderiam fazer muito estrago à União Soviética”. Isso aconteceu, claro, nos anos 80, os muçulmanos que representavam à União Soviética eram uma coisa boa. Poucos agora se lembram de que jihad era uma palavra boa em Washington nos anos 80, e que os Mujahideen afegãos foram louvados como guerreiros da liberdade. A jihad financiada pelos Estados Unidos no Afeganistão levou ao jihadismo de hoje, mesmo se a União Soviética entrou caiu sem sua população muçulmana desempenhar qualquer papel significante em sua queda. Acontecimentos desde a 2ª Guerra Mundial, pouco compreendidos por observadores externos, significou que a Ásia Central e seus habitantes foram bem integrados à União Soviética. De Fato, em 1991, no último ano de sua existência, o apoio para a continuação da existência da URSS não era mais alto em lugar algum do que nas repúblicas de maioria muçulmana da Ásia Central. Os centro-asiáticos provaram ser os mais soviéticos de todos os cidadãos soviéticos.
Quase um quarto de século se passou desde que a União Soviética cessou de existir, mas pouco sobre a Ásia Central contemporânea pode ser compreendido sem entender as transformações massivas que a região passou nas sete décadas de domínio soviético. O legado soviético dá forma às maneiras em que a vasta maioria de centro-asiáticos se relaciona com o Islã. Posto de forma grosseira, nação e Islã coexistem na Ásia Central e existe pouco apoio ao extremismo ou a islamização do estado. Ao invés disso, a história real é a da persistência do secularismo no estado e do entendimento secular do mundo entre o público.
Com certeza, grupos extremistas existem na Ásia Central. Um número de diferentes trajes apareceu no Uzbequistão na turbulência política dos últimos meses de poder soviético e buscaram a implementação do que viam como a Xaria no país. A reação do regime foi ligeira. Tais grupos foram perseguidos e a maioria de seus ativistas levados ao exílio nas vastidões sem estado do Afeganistão onde formaram o Movimento Islâmico do Uzbequistão (IMU). O IMU foi um produto caseiro e apesar de ter criado ligações próximas com a al-Qaeda, seu objetivo declarado permaneceu estreitamente focado no Uzbequistão: Derrubar o regime do Presidente Islam Karimov e substituí-lo com um estado islâmico. O IMU elevou-se a uma proeminência global em 1999 quando fez uma incursão armada no Quirguistão na esperança de marchar até o Uzbequistão. Os insurgentes não obtiveram sucesso e apesar de terem retornado no ano seguinte, acabaram recuando para base do IMU no Afeganistão. O IMU foi grandemente destruído na campanha americana de bombardeios na sequência do 11 de setembro, mas os que restaram sobrevivem no Waziristão nas áreas tribais do Paquistão e desempenham um papel na insurgência dos Talibãs no Paquistão. (A jihad afegã, portanto, fecha o círculo, com seus beneficiários ostensíveis agora travando guerra com o Paquistão, um de seus principais benfeitores.) Finalmente, nos últimos dois anos, voluntários uzbeques (e tajiques) apareceram no Síria e também operam no assim chamado Estado Islâmico. Também há uma presença uzbeque considerável no ciberespaço militante islamista internacional.
A Ásia Central tem também presenciado episódios de violência islamista. Dois atentados a bomba idênticos em Tashkent em fevereiro de 1999 dispararam a repressão do estado uzbeque de todas as formas de extremismo. A responsabilidade por outra série de ataques a bomba aparentemente conectados no Uzbequistão em 2004 foi tomada por uma organização chamada Islomiy Jihod (Jihad Islâmica). Em 2011, o Cazaquistão passou por um número de episódios violentos e várias cidades. Há também o continuado sucesso do Hizb-ut-Tahrir, a organização islamista internacional que espera estabelecer um califado através de uma mobilização não-violenta, ao recrutar membros por toda a Ásia Central. Somando-se, esses grupos representam uma variedade considerável de atividade islamista na região.
No entanto, um foco apenas em tais grupos e suas ações podem esconder o simples fato de que, para a vasta maioria dos centro-asiáticos, o extremismo tem pouco apelo. Alguns estudos etnográficos deixam claro a noção de que os assuntos de Deus e do estado podem (e devem) ser separados possuem considerável força entre as populações muçulmanas da Ásia Central. Para muitas pessoas, o termo operacional é “Muçulmanidade” (musïlmanshïlïq em cazaque, musulmonchilik em uzbeque), uma identidade comunitária em que ser muçulmano está baseado em certo conjunto de padrões culturais e comportamentais onde fé e observância dos rituais não são as características centrais. A herança sufista da região também desempenha um papel (apesar de as correntes de iniciação sufista terem sido na maior parte destruídas no período soviético). A antropologista Maria Louw relata que ela frequentemente escutava o aforismo Naqshbandi: “O coração com Deus, a mão no trabalho”, citado a ela por pessoas no Uzbequistão durante sua pesquisa de campo. Krisztina Kehl-Bodrogi, trabalhando na província Corásmia no norte do Uzbequistão, enfatiza ainda mais a ideia de que para a maioria das pessoas com que ela se encontrou durante seu trabalho de campo, o Islã residia em rituais domésticos, na visita a santuários e curandeirismo. A maioria tomava a ausência de religião da vida pública como normal e natural. A mesma visão é apoiada por pesquisas de opinião. Dada a atmosfera política não muito aberta na região, essas pesquisas são problemáticas, mas mesmo assim nos contam algo. Fica claro a partir delas que as atitudes centro-asiáticas diferem daquelas em outras partes do mundo muçulmano. Uma pesquisa do Pew de 2012, por exemplo, descobriu que os centro-asiáticos apresentam baixos níveis de apoio para fazer a Xaria a lei do país ou e de dar aos tribunais religiosos jurisdição sobre a vida familiar e disputas de propriedade.
O legado soviético
Para entender o porquê de as coisas serem assim, precisamos nos voltar para o que aconteceu com a Ásia Central sob o comando soviético. O período soviético foi tanto intensamente destrutivo quanto altamente produtivo. Ele destruiu a maioria da infraestrutura do Islã em uma série de campanhas antirreligiosas nos anos 30, que empurrou o Islã para fora da esfera política e encolheu muito a quantidade de conhecimento religioso presente na Ásia Central. No entanto, as políticas soviéticas também produziram uma população educada e mobilizada altamente investida em identidades étnico-nacionais. Essas identidades nacionais, principalmente cristalizadas durante o período soviético tardio, conseguia acomodar o Islã como um aspecto da identidade e herança nacionais. Como resultado, Islã, nação e tradição vieram a coexistir alegremente na região.
As campanhas antirreligiosas foram devastadoras. Nenhum estado deixou o Islã em paz na era moderna. Na Turquia, no começo a república também atacou a autoridade das elites islâmicas e fez pressão contra a influência dos ulemás na vida do país. Ela baniu as ordens sufistas (tariqas), pôs restrições sobre a vestimenta religiosa e efetivamente nacionalizou mesquitas, transformando imãs em servos do estado. O regime soviético estava, contudo, em uma classe completamente diferente. Ele buscou nada menos do que extirpar a religião do mundo em sua busca de um iluminismo racionalista completo. Isso significou erradicar a religião das mentes das pessoas tanto quanto destruir as instituições que a apoiavam. Começando em 1927, os tribunais cádi foram abolidos, a propriedade waqf nacionalizada e as madraças fechadas. Mesquitas, santuários e alojamentos sufistas foram fechados às centenas (alguns destruídos, muitos transformados para outros usos e alguns poupados como “monumentos arquitetônicos”) e incontáveis ulemás foram enviados a campos de trabalho como inimigos do povo. A campanha continuou, com algumas voltas e reviravoltas, até 1941, quando a invasão nazista da União Soviética interrompeu isso. Depois disso, o estado soviético se contentou com uma combinação de regulamentação e repressão – sem, contudo, recorrer à violência dos anos 30. Em 1943, ela até permitiu o estabelecimento do Diretório Espiritual para os muçulmanos da Ásia-Central e do Cazaquistão (conhecido como SADUM segundo suas iniciais em russo) com a responsabilidade de operar um número limitado de mesquitas e finalmente, dirigir duas instituições de aprendizado islâmico. Esse “Islã oficial” era tolerado e às vezes obrigado a servir aos objetivos da política externa soviética nas décadas mais tardias.
Mas se a violência amainou, nada da infraestrutura destruída nos anos 30 foi reconstruída. Por seis décadas, então, até o fim do período Gorbachev, as sociedades muçulmanas na Ásia Central existiram com quase nenhuma educação religiosa formal, nenhuma presença pública do Islã, nenhuma publicação religiosa e pouquíssimo contato com o resto do mundo muçulmano. Havia muitas mesquitas semiclandestinas e não oficiais, mas, na ausência de uma educação religiosa acessível, a quantidade de conhecimento islâmico disponível localmente foi vastamente circunscrita. Desaprovação oficial da observância islâmica significou que o Islã foi completamente empurrado para fora da vida pública. Ele não despareceu, mas tornou-se local e foi transformado em sinônimo de tradição.
No entanto, a experiência soviética não representou apenas destruição. O estado soviético reconhecia a nacionalidade como uma parte crucial (e politicamente relevante) da identidade de seus cidadãos. Em sua visão, a União Soviética foi construída sobre a base da amizade dos povos, e cada um possuía um passado longo e glorioso e uma miríade de características nacionais que os definiam. Existiam limites, é claro, mas a celebração das identidades nacionais individuais era absolutamente legítima e frequentemente posta em prática em organizações (institutos de pesquisa histórica, etnográfica e folclórica, museus, filmes, novelas, jornais literários) fundadas pelo estado soviético. O estado soviético, de fato, presidiu sobre o maior experimento do mundo em construção de nações. A Ásia Central não era exceção alguma. No período pós-Stalin particularmente, as identidades nacionais se cristalizaram em cada uma das repúblicas da região e foram amplamente internalizadas por seus cidadãos. Esse senso de identidade e solidariedade nacionais proporciona aos regimes pós-soviéticos um poço profundo de legitimidade, e o usam avidamente.
O reavivamento islâmico pós-soviético
Essa era a situação quando a ordem soviética começou a entrar em colapso no final dos anos 80. O desmoronamento da autoridade moral do comunismo foi acompanhado por um estonteante reavivamento religioso através do território da União Soviética, e a Ásia Central novamente não foi nenhuma exceção. Conforme os muros vinham desmoronando, ligações com o resto do mundo muçulmano foram reestabelecidas. Muçulmanos de muitas diferentes estirpes apareceram na região para propagarem suas versões do Islã. Devotos do Tablighi Jamaat do Paquistão ficaram lado a lado com os seguidores de Fethullah Gülen da Turquia e com os sufis de todos os lugares. A Arábia Saudita fundou novas empresas de publicação. Mesquitas foram reabertas ou reconstruídas, enquanto que muitas novas começaram a ser construídas, e a educação islâmica reapareceu. A observância de injunções rituais e islâmicas aumentou e o conhecimento islâmico retornou, o Islã reapareceu na vida pública da região.
Esse reavivamento não é uniforme através da Ásia Central. Uma parte considerável da população urbana continua a ter pouco interesse em religião e existem diferenças marcantes entre as regiões. O Vale Fergana, dividido entre o Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão, possui as taxas mais altas de observância religiosa e é o epicentro de conservadorismo religioso e de fé. Outras regiões do Uzbequistão, como a Corásmia, e grandes partes do Quirguistão e do Cazaquistão oferecem um drástico contraste. Não obstante, a situação religiosa na Ásia Central hoje é bem diferente do que era 30 anos atrás.
O reavivamento religioso deixou as elites políticas da região extremamente desconfortável. As elites políticas da era soviética sobreviveram no poder na Ásia Central depois do colapso da União Soviética conforme os comunistas nativos à terra se reinventaram como líderes nacionais, usando a linguagem validada pela própria política de nacionalidades. Os presidentes do Uzbequistão e do Cazaquistão tem estado no poder desde 1990, e o do Tajiquistão desde 1992. Os presidentes mudaram no Turquemenistão e no Quirguistão, mas tem havido pouca mudança estrutural nas elites que governam esses países. Essas elites retêm a desconfiança soviética quanto a religião mesmo quando são forçados a lidar com a crescente fé de seus cidadãos. Ao mesmo tempo, eles baseiam sua legitimidade sobre a nação e celebram sua herança cultural. O resultado é uma complexa, mas bem lógica posição quanto ao Islã. Os regimes valorizam o Islã como parte da herança cultural de cada nação e invocam os valores morais e étnicos que surgem dele, mas também buscam definir o Islã como nacional de fato. Eles não escondem sua hostilidade ao tipo errado de Islã, um que faça alegações políticas de alguma sorte, ou de fato um cuja expressão os próprios regimes não controlem. No Uzbequistão, por exemplo, o estado honra a “herança de ouro” (oltin meros) da nação que inclui a obra de grandes intelectuais islâmicos do passado tais como os imãs al-Bukhari e al-Tirmidhi, e também a tradição local do Islã Hanafi e do Sufismo. Todos esses são considerados nacionais e celebrados como um exemplo das tradições humanistas da região. No Turquemenistão, a noção de “Turquemenidade” (Türkmençilik) – exaltada ao nível de uma doutrina oficial – define os parâmetros de um Islã nacional. Todas as outras expressões do Islã, contudo, são tidas como estranhas as tradições da nação, importações estrangeiras que ameaçam descarrilhar a nação da trilha para o progresso. Tais formas do Islã têm que ser combatidas sem misericórdia.
Depois da independência em 1991, os regimes usaram métodos da era soviética para lidar com o Islã. SADUM não sobreviveu a desmantelação da União Soviética, mas cada novo estado estabeleceu o seu próprio sucessor nacional para o SADUM que veio a definir o Islã oficialmente aceitável. Todo Islã “não-oficial” era suspeito e perseguido. Mesquitas indesejáveis foram fechadas, figuras religiosas rebeldes foram presas (ou desapareceram) e a educação e publicações islâmicas rigidamente controladas.
Aí veio o 11 de setembro. Ele fez o antiterrorismo a moeda comum do discurso de segurança internacional e permitiu aos regimes Centro-Asiáticos usarem a linguagem do antiterrorismo contra toda atividade islâmica que não foi autorizada. Outro efeito do 11 de setembro foi um deslocamento geopolítico sísmico que viu os Estados Unidos adquirindo o uso de bases aéreas no antigo território soviético, incluindo uma no Quirguistão e duas no Uzbequistão. A ironia dos Estados Unidos estarem usando bases aéreas construídas pelos soviéticos para conduzir sua guerra contra grupos que foram um resultado direto da jihad americana contra os soviéticos se mostrou sutil demais para que a maioria das pessoas percebesse, mas os novos alinhamentos políticos possibilitados por essa razão fortaleceram a determinação dos governos Centro-Asiáticos de controlar o Islã e de reprimir todas as suas expressões não autorizadas. O governo do Uzbequistão tomou a posição mais dura quanto a isso, mas o Cazaquistão e o Tajiquistão também se deslocaram para essa direção nos últimos anos. Em 2011, o governo do Cazaquistão baniu salas de oração e cultos em institutos estatais. Em 2010, o governo do Tajiquistão ordenou que todos os seus cidadãos que estivessem estudando em instituições religiosas no exterior (maiormente no Paquistão, Irã, Egito e Arábia Saudita) que retornassem para casa. Uma campanha que fechava mesquitas que não eram oficiais culminou em uma lei de 2011 “sobre a responsabilidade dos pais em educar e criar filhos” que marginalizou frequentar mesquitas a crianças abaixo dos 18 anos. A responsabilidade dos pais pelos filhos agora se estende a assegurar que não cabulem aula para irem à oração em uma mesquita. A lei talvez seja inerentemente inaplicável mas dá uma clara indicação da atitude do estado tajique quanto ao Islã.
O Islã na Ásia Central hoje
Entre todas essas coisas, é crucial fazer algumas distinções. Os elevados níveis de fé e observância do Islam não são a mesma coisa que radicalização. Pelo contrário, eles indicam um conservadorismo cultural crescente que dificilmente é único à Ásia Central e no qual os regimes também participam através de sua celebração de valores “nacionais” tradicionais. Nem são políticos todos os grupos não-oficiais, quem dirá radicais. Uma vez que os governos marginalizam todos os grupos que não estejam sob a supervisão de diretórios religiosos oficiais, muitos grupos religiosos são por definição ilegais. Está no interesse dos regimes rotular todos os grupos clandestinos como extremistas e anti-estado, mas tais alegações devem ser examinadas criticamente. Grupos que não são oficiais incluem os agrupamentos sufistas ou muçulmanos praticantes que não seguem modos de adoração Hanafi prescritos oficialmente. Nem deveríamos presumir que grupos islâmicos locais estejam conectados globalmente; existe razão para duvidar se as divisões locais do Hizb-ut-Tahrir são parte de uma organização internacional transparente e não sejam fenômenos orientados localmente.
É também crucial lembrar que quase um quarto de um século depois do colapso da União Soviética, a Ásia Central ainda permanece fora da maioria das redes que conectam outros países muçulmanos uns aos outros. Sejam padrões de viagem ou de migração por trabalho, acesso à televisão, uso da língua, cultura popular moderna ou a malha de transportes, os estados centro-asiáticos estão muito mais proximamente ligados à Rússia do que à Turquia ou qualquer parte do Oriente Médio. As esperanças desencadeadas na Turquia pelo colapso da União Soviética de que a Ásia Central se tornaria parte do bloco túrquico com um alfabeto e uma política externa em comum rapidamente encalhou nos cardumes da realidade. Setenta anos de governo soviético tinham moldado a Ásia Central de maneiras cruciais. Hoje, a Turquia possui uma presença na maioria dos estados centro-asiáticos (apesar de que suas relações com o Uzbequistão, o mais populoso dos cinco, tem sempre sido bem fria), mas isso raramente fornece um modelo para ação política.
Por todos os medos que os estados centro-asiáticos possuem do extremismo religioso, os reais problemas da região estão em outro lugar – nas fracas economias de seus estados (o Cazaquistão sendo a maior exceção), na natureza cleptocrática de muitos doa regimes e na maldição da monocultura do algodão que especialmente aflige o Uzbequistão, Tajiquistão e Turquemenistão. Todos os estados centro-asiáticos, com a significante exceção do Cazaquistão, passaram por massivas migrações de mão de obra conforme moços saem para procurarem empregos que não existem perto de casa. Seus destinos nos contam muito sobre as realidades econômicas e a maneira que os centro-asiáticos imaginam o mundo. A vasta maioria dos migrantes seguem rumo ao norte para o Cazaquistão e a Rússia, para trabalharem nos setores da construção e de serviços desses países. A escala da migração é massiva, pois engloba até 10 por cento da população do Tajiquistão, em sua maioria homens, e as remessas financeiras respondem por talvez até metade do PIB do país. A situação é apenas um pouco menos drástica no Quirguistão (onde remessas financeiras respondem por 15 por cento do PIB) e no Uzbequistão. O estado abismal das economias centro-asiáticas fornece muitos fatores impulsionadores, mas o arraste vem esmagadoramente do território que antigamente era soviético. Pouquíssimos migrantes rumam para o sul até o Oriente Médio. A migração de mão de obra, portanto recria ligações com o antigo espaço soviético sob novas condições.
De fato, as condições em que os migrantes se encontram pode causar radicalização mais do que qualquer coisa em seus países de origem. Migrantes centro-asiáticos na Rússia enfrentam péssimas condições de vida, discriminação e a hostilidade da sociedade local, tudo isso conduz a reconsiderações de identidade e a descoberta da religião. Ao mesmo tempo, o discurso da mídia Russa sobre os assuntos do mundo tem muito em comum com a narrativa da culpabilidade dos Estados Unidos por todas as coisas erradas do mundo que os militantes islamistas abraçam. Talvez não seja surpreendente de que muitos, se não a maioria, centro-asiáticos lutando na Síria e no Iraque sejam recrutados da migração de mão de obra na Rússia.
Na própria região, devemos lembrar, o Islã ou o radicalismo islamista não desempenharam papel algum em duas derrubadas de presidentes no Quirguistão em 2005 e 2010 ou em brutais revoltas étnicas que irromperam no sul do país em junho de 2010. Esse último episódio, o mais violento episódio na Ásia Central desde o massacre de Andijan de maio de 2005 (quando forças de segurança uzbeques responderam a um protesto anti-governo com um ataque massivo), foi de fato um lembrete depressivo da força dos discursos étnico-nacionais no espaço pós-soviético – foi a linguagem pós-soviética de nação e direitos nacionais ao invés da do Islã que proporcionou o canal mais fácil para a mobilização do descontentamento.
O extremismo religioso existe na Ásia Central, mas a bem mais mundana história da persistência do legado soviético é mais importante. Isso engloba tanto a proeminência das identidades étnico-nacionais das quais os regimes incumbentes dependem e contínuas atitudes que veem a religião e o estado como entidades discretas. Mais importantes (e talvez mais perigosos) são os discursos de perigo que exageram a ameaça do extremismo e servem como um disfarce para o autoritarismo dos regimes locais.
Adeeb Khalid
1º de setembro de 2015
Tradução de: Renato José Lima Trevisan
Fonte: www.turkishreview.org