Erdogan consolida poder ao forçar renúncia do premier
Enquanto trabalha para dominar esfera política, presidente derruba imprensa e rivais
ANCARA – Os ambiciosos planos do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, de instituir um sistema presidencialista no país, acabaram derrubando o premier Ahmet Davutoglu, que anunciou sua renúncia na quinta-feira. Para analistas, as manobras de Erdogan — que dentro e fora do país é acusado de crescentes violações aos direitos humanos, à liberdade de imprensa e controle absoluto da esfera política — têm um objetivo claro: concentrar ainda mais poder em suas mãos. No sistema parlamentarista, que vigora na Turquia, o presidente teria atribuições simbólicas, mas Erdogan, que domina o cenário desde 2003 e é apelidado de “sultão”, fortaleceu suas funções ao chegar ao cargo em 2014. Desde então, Davutoglu, considerado um contrapeso a Erdogan por suas posições mais modernas e sua suposta resistência a políticas mais duras, vinha sendo ameaçado.
Nas últimas semanas, as divergências entre os dois eram cada vez mais evidentes. Na semana passada, Davutoglu teve seu poder esvaziado por uma manobra de Erdogan, que anulou uma série de nomeações com as quais não concordava enquanto o premier estava fora em viagem oficial. Além disso, um misterioso blog publicou um texto anônimo chamando Davutoglu de traidor, o que tornou sua situação insustentável. Segundo rumores, a decisão foi tomada durante uma reunião extraordinária da direção do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) em Ancara, um dia depois do vazamento de notícias sobre uma ruptura entre os dois.
Mentor político do premier, Erdogan estaria tentando tirá-lo do caminho político por discordâncias sobre seu modelo político. O presidente acusa o premier de lentidão ao promover alterações na Constituição para reforçar os poderes presidenciais. Outro tema em questão é o laicismo do governo turco — islamista, Erdogan vem jogando seu peso para favorecer o conservadorismo da sociedade e criar “uma nova geração religiosa”. Do lado oposto, Davutoglu rebateu o presidente do Parlamento na semana passada ao dizer que o “principio do laicismo se manteria na nova Constituição” e estava fora de questão modificá-lo.
Para Nasuhi Güngör, colunista próximo a Erdogan, o atual sistema político turco provoca “uma dualidade de estruturas administrativas”. Mehmet Ali Kulat, dirigente do instituto de pesquisa Mak Danismanlik, também ligado ao presidente, prevê uma nova votação em outubro ou novembro.
— Daqui por diante, a única pauta é o sistema presidencialista e uma eleição antecipada.
Oposição denuncia ‘golpe palaciano’
Se confirmado o novo pleito, será o terceiro em menos de 18 meses. O sucessor do premier deve se mostrar bem mais inclinado a apoiar a pretensão de Erdogan de alterar a Constituição para criar um sistema presidencialista, medida que opositores temem poder gerar um autoritarismo crescente. Os nomes mais cotados são o do Ministro dos Transportes, Binali Yildirim, e o da Energia, Berat Albayrak — que é genro do presidente.
As aspirações de Erdogan agravam o clima de instabilidade no país. Após as eleições de junho do ano passado — quando o AKP perdeu a maioria absoluta pela primeira vez desde que chegara ao poder em 2003 — Erdogan já havia boicotado qualquer acordo com a oposição para formar um governo de coalizão. A manobra aumentou a polarização política e social, e acabou colocando a legenda de volta ao controle do Parlamento em novas eleições.
Numa critica velada ao alto comando da legenda, que estaria limitando os seus poderes, Davutoglu disse que a renúncia “não deriva de uma decisão pessoal, mas de uma necessidade”. Num discurso no qual defendeu seu histórico na função, mas também jurou lealdade a Erdogan, ele afirmou que manteve seu partido e o governo intactos durante um período tumultuado e prometeu que o governo “forte” do AKP irá continuar.
— Da minha boca, nunca saiu qualquer palavra negativa sobre o nosso presidente, nem vai sair. Não sinto raiva nem rancor — afirmou, descartando um conflito entre ele e Erdogan.
O principal líder opositor, Kemal Kilicdaroglu, disse que a saída de Davutoglu está em linha com a movimentação de Erdogan para se fortalecer.
— A renúncia de Davutoglu não deve ser percebida como uma questão interna do partido, todos os partidários da democracia devem resistir a esse golpe palaciano — criticou Kilicdaroglu na sede do Partido Republicano do Povo.
A oposição ainda acusa Erdogan de continuar mandando no AKP. Fundador do partido em 2001, ele teve que abandoná-lo em 2014, ao se tornar presidente — pela lei, o chefe de Estado não pode ter filiação partidária.
O caos político ocorre num momento-chave em que a Turquia vem ajudando a Europa a conter a crise migratória — e combater o Estado Islâmico. Um dia antes da renúncia, Davutoglu obteve um triunfo diante da Comissão Europeia, que aprovou um acordo para dar aos turcos o direito de viajar à Europa sem visto, antiga reivindicação do país.
Fonte: http://oglobo.globo.com/