Oriente Médio, entre a paz e o apocalipse
Como confronto por procuração entre as grandes potências e campo de provas para armas e táticas de guerra, a Guerra Civil Síria desempenha um papel comparável ao da Guerra Civil Espanhola nos anos 1930.
Desta vez não se trata de um embate entre duas ideologias opostas, mas entre interesses imperiais, nacionais, étnicos e sectários entrecruzados e emaranhados, e isso dificulta tanto chegar a um acordo quanto à vitória de algum dos muitos lados.
Mesmo assim, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, e o chanceler russo, Sergei Lavrov, anunciaram em Munique no fim de semana passado uma trégua, em princípio a começar no sábado 27, que poderia abrir caminho a um acordo de divisão da Síria e criação de uma federação entre os grupos étnicos e sectários rivais, embora na véspera, em entrevista à Agência France Presse, Bashar al-Assad reafirmasse sua pretensão de vir a retomar todo o país.
Dezessete meses de bombardeios da coalizão liderada pelos EUA tiveram pouco efeito aparente contra o Estado Islâmico e a tentativa de armar “rebeldes moderados” para enfrentá-lo foi abandonada em meados de 2015, mas os cinco meses de envolvimento russo mudaram o curso de uma guerra que em setembro, após a queda de Palmira nas mãos do EI, parecia perdida para Bashar al-Assad.
O Ocidente acusa a Rússia de bombardear mais os rebeldes sírios que o EI, mas também este último foi visivelmente enfraquecido. Além de perder territórios, teve cortadas suas rotas de exportação de petróleo para a Turquia e para os rebeldes sírios por meio das quais se financiava.
Relatos de refugiados do território controlado pelo Califado dizem que os soldos dos militantes foram cortados pela metade, faltam produtos básicos, os impostos são exigidos em dólar e a liberdade de prisioneiros está à venda.
O próprio comando do EI parece estar orientando seus voluntários a se dirigirem não mais para a Síria e Iraque, mas para a Líbia, onde a organização está em expansão e tenta controlar campos de petróleo.
Os ataques russos ao Exército Livre da Síria (ELS), apoiado pelo Ocidente, são compreensíveis, não só por ameaçar seus protegidos em Damasco como por cooperar com as forças fundamentalistas patrocinadas pela Arábia Saudita e demais monarquias do Golfo Pérsico, e mesmo com a Al-Nusra, braço sírio da Al-Qaeda, frequentemente nos mesmos combates.
Entretanto, são os civis que mais sofrem, mais ainda agora que o exército de Assad, as tropas do Irã, Hezbollah e milícias xiitas iraquianas que o apoiam tentam avançar ao máximo antes do possível congelamento das linhas de frente por um cessar-fogo. Isso é feito sob a cobertura de bombardeios russos e sírios redobrados nas regiões de Alepo e Idlib, noroeste da Síria.
Damasco e Moscou negam a responsabilidade, mas cinco hospitais e duas escolas foram bombardeados em ataques que lhes foram atribuídos por ONGs e governos ocidentais.
Uma das cidades onde um hospital foi destruído é Azaz, cujo controle está dividido entre o ELS e a Al-Nusra. Ao mesmo tempo, seus arredores foram bombardeados pela artilharia da Turquia, aliada desses grupos e inimiga de Assad, para tentar impedir a queda da cidade nas mãos do YPG (sigla de “Unidades de Proteção Popular” em curdo), ligado ao PKK, guerrilha separatista do Curdistão turco.
O YPG participou da revolta contra Assad em 2011, enfrentou a Al-Nusra e se aliou ao ELS contra o Estado Islâmico. Ao mostrar-se a força terrestre mais eficaz contra este último, recebeu apoio tanto dos EUA quanto da Rússia e expandiu seus domínios no norte da Síria à custa do Estado Islâmico desde sua vitória na batalha de Kobane, em janeiro de 2015.
Os rebeldes sírios se dizem “traídos” pelos curdos e os EUA assistem, perplexos, a seus protegidos se engalfinharem uns com os outros. Erdogan atribui ao YPG o atentado da quinta-feira 17 que matou 28 em Ancara e o do dia seguinte, que matou mais 6, ao atacar um comboio militar.
Acusa EUA e Europa de criar um “mar de sangue” ao apoiar o YPG em vez de combatê-lo como “organização terrorista”, enquanto estes o pressionam a deter os ataques à força curda que ameaça controlar quase toda a faixa de fronteira, dar livre trânsito aos guerrilheiros separatistas e, juntamente com o cerco de Alepo pelo Exército sírio, cortar as linhas de abastecimento a partir da Turquia dos rebeldes sírios e do EI.
A 20 quilômetros de Azaz está Dabiq, tomada pelo Califado desde agosto de 2014 e de grande importância estratégica e simbólica. Segundo uma profecia islâmica medieval, essa pequena cidade seria o local de uma batalha decisiva entre “romanos” (cristãos) e muçulmanos nas vésperas do Juízo Final, razão pela qual a revista oficial do Califado se intitula Dabiq.
Não está sozinha, pois a Arábia Saudita também não parece disposta a admitir a sobrevivência de Assad e a vitória dos iranianos e do Hezbollah contra os grupos fundamentalistas que patrocina. Enviou tropas e caças F-15 à base turca de Incirlik, em aparente preparação de uma intervenção.
Israel oficialmente nunca teve relações diplomáticas com os sauditas e seu embaixador foi expulso da Turquia por causa do ataque de Tel-Aviv à Flotilha da Paz para Gaza e da simpatia de Erdogan pelo Hamas, mas nesse ponto seus interesses coincidem.
O falastrão ministro da Defesa israelense, Moshe Ya’alon, revelou que “países do Golfo” o procuraram para entendimentos contra o Irã e buscam armas nucleares, mas foi embaraçadamente desmentido pelos sauditas.
Outro ministro de língua solta, Yuval Steinitz, da Energia, provocou o cancelamento de uma viagem de Benjamin Netanyahu ao Cairo ao revelar que os egípcios inundaram os túneis de Gaza a pedido de Tel-Aviv.
Há também lobbies e forças políticas contrárias a um acordo com os russos, iranianos e Assad nos EUA e Europa, mesmo se essa se tornou a única alternativa realista para derrotar o EI. Também na sexta-feira 12, o bilionário George Soros virou um de seus porta-vozes ao dizer que Vladimir Putin é um perigo maior que a organização terrorista e bombardeia os civis sírios para “inundar” a Europa de refugiados e provocar o colapso da União Europeia.
Essa teoria conspiratória foi adotada pelos turcos, que acusam russos, Assad e curdos de expulsar refugiados para suas fronteiras e os últimos de promover uma “limpeza étnica” e expulsar árabes sunitas (ou pelo menos os fundamentalistas que colaboravam com o Califado) de territórios tomados ao EI para ocupá-los com seu povo.
A Turquia pretende conseguir apoio econômico e vantagens diplomáticas de Bruxelas, inclusive isenção de vistos para turcos na Europa, em troca de sua cooperação para evitar que refugiados cheguem à Europa.
Cinquenta mil novos refugiados dos bombardeios e do avanço do Exército de Assad foram detidos na fronteira. Ao mesmo tempo, quer o apoio da Otan a seus interesses estratégicos.
Angela Merkel apoiou a proposta turca de uma zona de exclusão aérea, que eventualmente se tornaria uma “área-tampão” ocupada pelos turcos e serviria para abrigar refugiados sírios sem deixá-los entrar na Turquia, mas também para cortar o caminho aos curdos e facilitar o abastecimento dos rebeldes.
A disposição de Erdogan de provocar uma crise manifestou-se quando fez derrubar o avião russo que teria sobrevoado seu território por segundos em novembro de 2015. Parece improvável, mesmo assim, que turcos e sauditas invadam a Síria sem respaldo da ONU ou de Washington, pois isso faria de suas tropas um alvo fácil e legítimo para os mísseis russos. A Otan garante a defesa de seus integrantes contra uma agressão externa, não suas eventuais incursões em território alheio.
O Exército turco reluta em se envolver tão diretamente na guerra civil e não há como aprovar tal intervenção na ONU, mesmo sob o pretexto da guerra ao EI, contra a vontade de Putin. E uma tentativa de impô-la unilateralmente poderia ser o gatilho da III Guerra Mundial para o qual o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, advertiu na sexta-feira 12.
Moscou argumenta que Damasco e seus aliados estão prestes a desencadear um ataque por terra contra Raqqa, a capital do Califado, e não é necessária a participação de forças ocidentais. Enquanto isso, o diplomata ítalo-sueco Staffan de Mistura, enviado da ONU, tenta a sorte em Damasco.
Na terça-feira 16, reuniu-se com o chanceler sírio e anunciou um acordo para a entrada de ajuda humanitária em cinco áreas sitiadas pelo governo e duas pelos rebeldes com um “teste da boa vontade do governo sírio”. Este, encorajado pelos sucessos militares, respondeu que era a seriedade da ONU e não a sua que precisa ser testada.
Enquanto os EUA e a Europa enredaram-se em interesses contraditórios ao tentar derrubar Assad, combater o Estado Islâmico, conter os refugiados e apoiar tanto a Turquia quanto seus arqui-inimigos curdos, a Rússia e o Irã têm um objetivo simples e aparentemente estão a caminho de consegui-lo: a manutenção de seus aliados no controle de uma grande parte da Síria.
*Reportagem publicada originalmente na edição 889 de CartaCapital, com o título “Entre a paz e o apocalipse”
por Antonio Luiz M. C. Costa