As verdades para além das narrativas de imigração
Entrevista com o antropólogo Leonardo Schiocchet sobre Palestina, América Latina, assimetria social e imigração.
Ao ler “Entre o Velho e o Novo Mundo: a diáspora palestina desde o Oriente Médio à América Latina” (Chiado Editora, 2015), livro organizado pelo antropólogo Leonardo Schiocchet, deparamos com uma situação social que nos parece geograficamente distante, mas que nos soa muito familiar. Uma sociedade indígena tem seu território ocupado e usurpado, enquanto sua população é dominada, humilhada e deslocada. Como o Brasil, a Palestina foi colonizada. Contudo, as conexões entre os dois mundos, a América Latina e o Oriente Médio, não se limitam ao infortúnio histórico e se revelam nas imigrações, nos refúgios e, sobretudo, na dimensão transnacional da experiência palestina, “um povo essencialmente diaspórico”, como escreve Schiocchet.
Frente a uma relação de poder extremamente desproporcional, em que perdura um sistema de apartheid, porta-vozes da crítica social, sejam acadêmicos ou personalidades públicas, vislumbram a neutralidade enquanto posicionamento ético. Crêem no “meio-termo” como o princípio da análise e do julgamento. No entanto, não se dão conta da falácia desse argumento, que parte da premissa de que existe um equilíbrio de forças onde há, de fato, uma profunda assimetria social. Tal ingenuidade oblitera o que escancara a realidade empírica. É da urgência de encarar essas verdades para além das narrativas produzidas pelos diversos atores sociais que nos falou o pesquisador curitibano, numa pausa em seu trabalho de campo em Jerusalém.
DIASPORA: Como e quando a Questão Palestina surgiu para você? Conte-nos um pouco dessa história.
Leonardo Schiocchet: A questão palestina, especificamente, veio mais tarde do que o interesse pelo mundo árabe e muçulmano. Eu já tinha começado o meu trabalho de campo no Líbano, que era trabalhar com os ‘ulama (especialistas religiosos) e a autoridade político-religiosa no país quando, em 2006, estourou a guerra do Líbano. Lá, eu conheci alguns palestinos, sobretudo um deles, que ficou meu amigo. A gente ficou numa área de Beirute que considerava mais segura porque era na frente da embaixada francesa e era cristã maronita, mas Israel bombardeou o país inteiro, inclusive essa área onde a gente estava. Durante esse período, a gente circulava pelos campos, inclusive o campo de Shatila, basicamente para visitar a família dele, para ver a loja que ele tinha lá, e eu me interessei muito pelos campos de refugiados naquela época, não só os palestinos. E aí eu fiz meu doutorado sobre isso e foi o começo da coisa toda.
D: E dessa experiência para a ideia do livro, como foi o processo?
LeoS: O livro se insere num projeto muito maior meu, que é trabalhar com processos de pertencimento social palestinos em vários contextos diferentes no mundo. Foi o que eu comecei a fazer quando acabou meu doutorado, quando eu trabalhei com grupos de palestinos refugiados no Iraque que foram assentados no Brasil. Depois eu trabalhei com um grupo de palestinos que tomaram cidadania dinamarquesa em Aarhus e depois com palestinos na Áustria, ou seja, eu pego vários contextos diferentes. A América Latina era um desses contextos, que passou a ser importante para mim justamente porque meu pós-doutorado foi no Brasil. Naquela época, dava aula na UFF (Universidade Federal Fluminense) e não tinha material em português, o que eu achava um problema grave, porque a gente dependia de material em inglês e então eu achava que a gente deveria construir nosso próprio material. Havia quem trabalhasse com palestinos na América Latina, mas o recorte teórico era restrito à imigração e eu achava que a gente deveria trabalhar com outros temas e também levar o tema da América Latina para o conhecimento geral. A ideia era fazer esse primeiro livro em português e depois fazer em árabe, uma coisa que eu ainda estou pensando, para que os próprios árabes e palestinos tenham conhecimento e tenham acesso a esse tipo de informação.
Conexões Sul-Sul
D: Nós da DIASPORA percebemos uma semelhança entre a proposta do seu livro e a nossa proposta, porque elas buscam essa relação Sul-Sul, as conexões entre Oriente Médio e América Latina, de que Rosemary Sayigh fala tão bem no seu capítulo [no livro], inclusive também por essa falta de material em português que você citou e que foi um dos motivos de a gente ter criado a Revista.
LeoS: Sim.
D: Nós poderíamos dizer que essas categorias “Oriente Médio” e “América Latina” são menos áreas geográficas do que criações de um pensamento colonialista imperialista ocidental?
LeoS: Em parte sim, mas não é uma construção que existe apenas enquanto pensamento imperialista. Você tem uma identidade latino-americana que não é uma coisa absoluta nem uma coisa objetiva. Mas você tem um sentimento de pertencimento social quando – isso não é uma coisa também que todo cidadão tem – vamos dizer assim, um argentino encontra um brasileiro e fala “Ah nós somos latinoamericanos, a gente compartilha muita coisa…”. Não é sempre que isso vai acontecer, mas isso acontece várias vezes.
D: Nem todos os argentinos e brasileiros têm essa identidade de latinoamericano…
LeoS: Nem todos, mas é uma coisa que várias pessoas compartilham, esse é o ponto! E quando várias pessoas compartilham, ela existe, não precisa todo mundo compartilhar nem compartilhar da mesma maneira. Tem gente que vai dizer que é o sangue quente, tem gente que vai dizer que é uma história compartilhada contra o colonialismo ou coisa do gênero, tem gente que vai dizer que é porque dança para caramba. As pessoas fazem a construção que quiserem sobre isso, mas o ponto importante é a gente entender que várias pessoas, de fato, sentem que existe alguma coisa que elas compartilham. A mesma coisa no mundo árabe. Antropólogo adora dizer “Marrocos não tem nada a ver com o Líbano”. Claro, tudo bem, de um ponto de vista, não tem nada a ver, mas se você perguntar para o marroquino e para o libanês, é bem possível que, ainda que eles digam que são diferentes, vão dizer que têm alguma coisa em comum. Então, para nós enquanto antropólogos, eu acho que é muito importante a gente se perguntar também como é que as pessoas formam um grupo, o que é essa cola,
o que é essa coisa que faz com que a gente se identifique com outras pessoas e forme um grupo.
Um grupo que não precisa ser necessariamente completamente rígido e eterno, mas você tem uma dinâmica de formação, de aproximação de certos sujeitos em relação a outros, como a ideia de palestinidade, justamente o que a gente está discutindo no livro.
Se nem todo palestino é igual, a gente pode dizer que existe uma palestinidade?
Dizer que não existe palestinidade é um pouco bizarro, é como dizer que só existem algumas vidas na palestina, mas ninguém se identifica com algo maior. As pessoas se identificam sim! O nacionalismo, por exemplo, é uma construção sobretudo do meio do século XIX em diante, mas isso não significa que nacionalismo não exista na cabeça das pessoas, no coração das pessoas, certo?
D: Sim.
LeoS: Então esse sentimento Sul-Sul de que você está falando, quer dizer, se a gente falar só que a América Latina e o Oriente Médio são construções completamente imperialistas, a gente perde um pouco de foco a questão de que muitas vezes as pessoas sentem que existe uma certa aproximação e isso é algo que eu estou interessado em entender. Como é que a gente pode aproximar e usar essa aproximação, essa solidariedade? A relação de você entender, estudar o outro não é só uma relação colonizadora ou de império, você pode ter outros tipos de relação para estabelecer aí. E quais as possibilidades de estabelecimento dessa relação, o que a gente pode fazer com isso é justamente uma das coisas que eu estava tentando explorar nesse livro.
Má informação e a ficção do meio-termo
D: Há algumas semanas, houve um debate intenso nas redes sociais acerca das crônicas de viagem do Deputado Jean Wyllys, aos territórios ocupados da Palestina Histórica, para usar a categoria que você usa na introdução do livro. Você teve oportunidade de acompanhar esse debate?
LeoS: Claro, claro.
D: Nas crônicas dele, identificamos a crença no que você chamou de “ficção do meio-termo”. Ele se coloca contra o BDS (Boycotts, Divestment and Sanctions) por acreditar que essa medida prejudica uma população inteira (os israelenses), cuja maioria seria constituída por pessoas contrárias à política de Estado israelense, o que seria uma injustiça. Isso nos remeteu ao seu conceito de “assimetria social”, algo que ele parece não ter percebido.
LeoS: Eu acho que é um pouco mais complicado do que isso, eu acho que o Jean Wyllys realmente está mal informado. Antes de mais nada, ele não entende que o problema não é ele ir e dialogar com pessoas que estão querendo dialogar contra a ocupação, certo? O problema é você ir num contexto de financiamento de Hasbara, propaganda estatal israelense. Quer dizer, você tem um financiamento de uma universidade, como a Hebraica de Jerusalém, uma universidade historicamente implicada no tratamento completamente desigual aos palestinos, que apoiou oficialmente o exército israelense durante o último cerco de Gaza, através de uma nota. Todo o esforço do BDS é um esforço no sentido de você falar “Olha, essa história de sentar e dialogar a gente já está vivendo há 68 anos”. Essa ideia de que você vai sentar na mesa e dialogar é uma falácia. É a mesma coisa que você sentar com um monte de banqueiros na mesa, com as maiores fortunas brasileiras, e tentar racionalizar, falando “Olha, a gente pode conversar, a gente pode fazer vocês verem racionalmente como vocês têm que dividir o dinheiro com os pobres brasileiros”. Você acha que isso vai funcionar? Não funciona assim, infelizmente. A relação entre poder e sujeito é muito mais complicada, e poder constrói inclusive a maneira como as pessoas pensam. Elas constroem narrativas para si mesmas, castelos, vamos dizer assim, dos quais elas não conseguem sair. E da mesma maneira, várias partes da esquerda israelense constróem a ideia de que eles estão abertos para um diálogo, quando na verdade a gente tem exatamente o oposto, historicamente, os Palestinos cedendo, cedendo, cedendo em todos os pontos, inclusive nas negociações de paz. E o esforço é usar justamente instituições de ensino acadêmicas e de pesquisa enquanto uma forma de dizer que você é democrático, quando na verdade isso simplesmente está indo como uma fachada para legitimar uma série de outras questões que são completamente absurdas, que é um Estado realmente de apartheid, comparável à África do Sul.
D: Por isso, uma certa urgência de ação, frente a essa contínua Nakba (catástrofe, em árabe).
LeoS: Exatamente. Você tem essas coisas usadas como uma fachada de democracia, na forma de propaganda do Estado, a Hasbara, mostrando “Olha, vejam bem como a gente é democrático”, “Olha, vejam bem como a gente defende os homossexuais, como isso e aquilo”. Quando, na verdade, a coisa é muito mais complicada, entende? Sobretudo acadêmicos têm que se levantar e se colocar contra. Você não pode mais dizer de dentro dessa estrutura que você quer diálogo. A única maneira que você tem de mudar essa situação é você sair dessa estrutura. Então, o BDS reconhece isso, que você tem que quebrar essa estrutura de dominação, essa estrutura hierárquica altamente desproporcional, assimétrica. E que serve para legitimar uma série de atitudes de Israel que são o contrário daquilo que eles dizem que fazem. É um pouco naïve da parte do Jean Wyllys até, de imaginar que o BDS está fechando as portas para o diálogo, quando é justamente o contrário, Israel fechou todos os espaços para diálogo já faz muito tempo. E também tem muita má informação. Não é que o BDS é contra que o Jean Wyllys vá e converse com essas pessoas, pessoas que supostamente se colocam contra a ocupação, mas que ele vá dentro de um esforço de Hasbara. Então se ele quiser ir, ele que vá com dinheiro próprio ou ele que convide gente para ir pro Brasil para dialogar ou coisa do gênero, mas você ir com dinheiro do governo israelense, seja por financiamento através de universidades ou de alguma outra maneira, é aí que mora o problema. O Jean Wyllys não consegue perceber isso.
Por Liza Dumovich
Sobre o autor do Livro:
Leonardo Schiocchet é PhD em antropologia pela Boston University e pesquisador do Austrian Academy of Sciences Institute for Social Anthropology (ISA). Há cerca de 10 anos, realiza pesquisa etnográfica entre palestinos no Líbano, Brasil, Dinamarca, Viena e Cisjordânia. É autor de diversos artigos e capítulos de livros sobre o tema e um dos organizadores do Refugee Outreach and Research Network, uma iniciativa do ISA.
Fonte: www.revistadiaspora.org