A Guerra de Erdoğan contra o Hizmet: passo a passo
Procuradores turcos fizeram várias prisões e buscas na manhã de 17 de dezembro de 2013, parte de uma série de investigações de corrupção que implicavam várias pessoas (e.g. filhos de três membros do governo) com laços muito próximos ao governo do partido AKP, do Primeiro-Ministro Recep Tayyip Erdoğan.
A resposta do Primeiro-Ministro Erdoğan foi chamar isso de tentativa de golpe contra o seu governo orquestrado por uma coalizão de inimigos esternos e domésticos e clamar pela segunda luta da Turquia por independência contra essas forças. Erdoğan alega que o “peão doméstico” dessa conspiração é o movimento inspirado por Fethullah Gülen, o Movimento Hizmet, que segundo Erdoğan infiltrou o Estado. Sua principal promessa na campanha eleitoral: esmagar e aniquilar o desleal Movimento Hizmet.
Por que Erdoğan escolheu o Hizmet como inimigo fantasma?
1. Justificar as medidas draconianas que ele precisou tomar para interromper e prevenir as investigações de corrupção de 17 e 25 de dezembro de 2013, que o implicavam e ao seu governo.
2. Restringir o Hizmet, que era independente de seu governo e falava aos muçulmanos turcos praticantes.
O plano de ação de Erdoğan contra o Movimento Hizmet
1. Subjugar e controlar a mídia tem sido um processo contínuo e não está restrito ao objetivo de Erdoğan contra o Movimento, contudo, tem sido muito útil pois garante que a narrativa do governo seja continuamente repetida e a percepção e consciência pública formadas ao seu gosto. Daí a proibição do Twitter e YouTube, já que estes não podem ser controlados.
2. Catalogar todos os funcionários públicos, burocratas, acadêmicos e jornalistas ao dar mais poderes ao Serviço de Inteligência Nacional da Turquia, que sabemos data da Reunião de Segurança Nacional de 2004, na qual Erdoğan e generais acordaram uma estratégia nacional contra o Movimento, incluindo seu fichamento.
3. Desumanizar os participantes do Hizmet para fazer com que seja mais fácil que o público aceite a perseguição e possível processo legal adiante.
4. Expurgar os catalogados que ousaram pôr a Constituição e a lei acima da lealdade inabalável ao Primeiro-Ministro Erdoğan. Um exemplo foi substituir o diretor da força policial de Istambul, a maior do país, pelo ex-prefeito de Aksaray, que não tem qualquer histórico no serviço policial. Até o momento, 20.000 pessoas foram expurgadas, rebaixadas e transferidas. O primeiro-ministro aceitou que essa é uma “caça-às-bruxas” contra aqueles que foram considerados “traidores”.
5. Prejudicar organizações Hizmet, por exemplo, com o fechamento de cursos vestibulares, tentativa de nacionalização do Banco Asya, pressão sobre empresários que publicam anúncios no Zaman, revogação de permissões para construção de novas escolas etc.
6. Prejudicar empresas que apoiam o Hizmet revogando licenças relevantes, como no caso da companhia mineradora Ipek Holding; pondo pressão em outros parceiros empresariais para dificultar o comércio com empresas que tenham laços com o Hizmet.
7. Preparar o terreno legal para criminalização do Hizmet por meio das várias medidas listadas abaixo.
Por que Erdoğan deve processar o Hizmet?
1. Justificar a narrativa que ele tem espalhado desde os protestos do Parque Gezi, ou seja, que forças estrangeiras estão trabalhando com traidores domésticos para minar o sucesso da Turquia.
2. “Provar” que as investigações de corrupção implicando-o e ao seu governo foram, de fato, uma tentativa de golpe.
3. Justificar as medidas draconianas tomadas por ele contra procuradores e policiais para interromper as investigações de corrupção com o pretexto de que elas estavam ligadas ao Hizmet, os parceiros domésticos dessa “tentativa de golpe”.
4. Prover justificativa para minar a separação de poderes na Turquia e, assim, garantir futura imunidade contra processos.
5. Cumprir sua promessa número um de processar o Movimento e, com isso, remover uma voz opositora alternativa e confiável.
Passos tangíveis dados por Erdoğan para criminalizar o Hizmet
A seguir há uma lista de passos tangíveis dados pelo governo AKP após o 17 de dezembro para garantir que o Movimento Hizmet seja efetivamente processado e criminalizado. Ela não inclui todos os passos dados contra o Movimento, apenas os mais relevantes nesse processo:
1. Mudar o HSYK, dando ao governo poderes críticos para nomear procuradores e juízes, além de indica-los a investigações e casos jurídicos, mudando o equilíbrio de poder no Conselho Supremo de Juízes e Procuradores (HSYK) após passar uma lei [1] em fevereiro.
2. A criação de “super-juízes de paz” com poderes extraordinários ao passar o novo pacote judicial [2] em junho. Um único juiz de paz terá poder unilateral para iniciar e terminar investigações e emitir todos os tipos de mandatos, como detenções, buscas, prisões, congelamento de bens etc. Anteriormente, essas decisões poderiam ser tomadas apenas por uma corte de paz constituída de um painel de juízes em vez de um único juiz. Os novos juízes de paz serão nomeados pelo, agora comprometido, HSYK.
3. Reestruturação da Suprema Corte de Apelações, subordinando o judiciário ao governo com o mesmo pacote judicial mencionado acima.
4. Ordens de Serdar Çoşkun, Procurador Público Chefe de Ancara, em 11 de junho, ao Departamento de Polícia e ao Departamento de Crime Organizado para execução de uma investigação secreta sobre o Movimento Hizmet, para obter informações de inteligência sobre os participantes, grupos de mídia, organizações de sociedade civil, escolas privadas, alojamento de estudantes, centros preparatórios, empresas, fundações e associações afiliadas ao Hizmet.
5. Turgut Aslan, Diretor da Unidade de Contraterrorismo do Departamento de Polícia Nacional (TEM), enviou 23 ordens escritas [3], em 25 de junho, aos departamentos de polícia de 30 províncias solicitando que eles contribuíssem para a investigação do Departamento de Investigação de Crimes Anticonstitucionais sobre o Hizmet, perguntando se o Hizmet tem uma divisão armada; se ele teria poder para depor o governo ou abolir a Constituição; se o Hizmet estava envolvido em alguns dos assassinados mais infames da história recente da Turquia, como o de Hrant Dink, em 2007, do padre católico Padre Santoro, em 2006, de um juiz membro do Conselho de Estado, em 2007 e de Üzeyir Garih, em 2001; para quais indivíduos ou poderes e grupos estrangeiros membros do Hizmet trabalham e com que frequência participantes proeminentes do Hizmet viajam ao exterior. A ordem da TEM também pede aos departamentos policiais de 30 províncias para encontrarem testemunhas secretas para testemunharem contra o Movimento, incluindo pessoas que tenham sido processadas em casos criminais e consideradas culpadas desde 2003.
Os passos acima mostram o terreno legal e comprobatório do governo do Primeiro-Ministro Erdoğan para processar e efetivamente criminalizar o Movimento Hizmet na Turquia. Os passos para controlar o HSYK, a Suprema Corte de Apelações e a criação de novos super-juízes de “paz” com poderes extraordinários é uma tentativa de garantir que um juiz e procurador nomeado pelo governo possa analisar e julgar o Movimento e assegurar que o veredito seja mantido em caso de apelação. As ordens dadas pelo Procurador Chefe Serdar Çoşkun e o diretor da TEM, Turgut Aslan, são provas de que o plano está bem encaminhado.
Esses passos são parte de um plano mais amplo contra o Movimento Hizmet, como revelado na pergunta parlamentar feita por İdris Naim Şahin, ex-ministro do interior e ex-membro do AKP no parlamento, ao atual Ministro do Interior Efkan Ala, na qual o Sr. Şahin afirma ter recebido um plano de ação detalhado sobre como o governo iria combater e criminalizar o Movimento Hizmet nos tribunais. O Sr. Şahin afirma que o documento estava assinado e questiona se ele é ou não genuíno.
Pergunta Parlamentar do ex-Ministro do Interior İdris Naim Şahin ao atual Ministro do Interior: O seu departamento preparou um plano de ação para erradicar o Movimento Hizmet?
İdris Naim Şahin era amigo próximo e confidente do Primeiro-Ministro Erdoğan. Ele foi Ministro do Interior e Membro do Gabinete de julho de 2011 a janeiro de 2013 e deputado do AKP de novembro de 2002 a dezembro de 2013. Após o 17 de dezembro, ele renunciou em protesto à resposta do governo e disse “O governo é comandado por uma pequena oligarquia de elites, de maneira que exclui amplos segmentos do eleitorado do partido e o povo turco”.
Pontos importantes sobre a questão parlamentar de İdris Naim Şahin:
1. Sabe-se que o governo está usando recursos do Estado para uma abordagem confrontadora com relação àqueles que têm simpatia ou são afiliados ao Movimento Hizmet, que é famoso por seus esforços de preservação da fé da nação, valores culturais e científicos e a promoção desses valores no exterior, o que aumentaria o prestígio da Turquia. É verdade que um plano de ação contra o Movimento Hizmet foi preparado e posto em prática?
2. O primeiro artigo do suposto plano de ação trata de uma conspiração para detectar aqueles que são membros do Movimento Hizmet, tentar destruir a ordem constitucional do país e juntar evidências necessárias contra o Hizmet de forma secreta?
3. O plano de ação comanda autoridades a investigarem se o Movimento Hizmet possui poder armado e se o Movimento tem o poder necessário para depor o governo?
4. O plano de ação pede uma investigação sobre a possível participação do Movimento Hizmet em atos criminosos infames como os assassinatos de St Santoro, Hrant Dink, Necip Hablemitoğlu e Üzeyir Garih e no massacre da Editora Zirve?
5. O plano de ação pede àqueles que se tornaram vítimas durante investigações criminais, nos últimos 10 anos, para testemunharem contra o Movimento Hizmet e exige que ex-membros do Movimento Hizmet sejam instados a testemunhar contra o Movimento e, depois, sejam protegidos pelo Sistema de Proteção à Testemunha?
Ismail Mesut Sezgin*
[1] http://uk.reuters.com/article/2014/02/26/uk-turkey-judiciary-idUKBREA1P1MF20140226
[2] http://www.todayszaman.com/columnist/gunay-hilal-aygun_351708_judiciary-of-the-new-turkey.html
[3] http://www.todayszaman.com/news-352318-criticism-rains-down-on-police-order-to-unlawfully-probe-hizmet.html
*Ismail Mesut Sezgin é pesquisador PhD no Instituto para Espiritualidade, Religião e Vida Pública na Universidade Leeds Metropolitan.
Publicado em Today’s Zaman, 22 de julho de 2014