Rússia pode impulsionar Turquia para um antagonismo político e militar duradouro com resto da OTAN
Ancara continua a se posicionar a meio caminho entre a Rússia e a OTAN. No entanto, ajustes podem pacificar e fortalecer laços essenciais com o mundo ocidental, argumenta Marc Pierini, ex-embaixador da União Europeia na Turquia.
Historicamente, a entrega de mísseis S-400 russos à Turquia em 2019 representou um duplo ganho estratégico para Moscou. Primeiramente, a presença desses mísseis eliminou qualquer entrega futura de mísseis Patriot dos EUA ou SAMP/T francês-italiano. Em segundo lugar, a ativação potencial dos mísseis russos levou Washington, em 2020, a impor sanções à Turquia – cancelamento da encomenda turca de 120 caças stealth F-35 e F-35B da Lockheed Martin e exclusão da indústria turca da produção de F-35.
Do ponto de vista de Moscou, o resultado é positivo: a interface sul entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi “limpada” de dois dos sistemas aéreos mais avançados.
Essa mudança nas relações militares entre Ancara e Moscou lançou dúvidas sobre a confiabilidade de um membro da OTAN que há muito tempo é a fortaleza da Aliança Atlântica no sudeste da Europa. Ancara explicou que o colapso da União Soviética mudou o jogo, mas a Turquia está ansiosa para manter seu papel dentro da OTAN. Além disso, está ativamente perseguindo seu objetivo de autonomia estratégica e exportações de armas.
Desde fevereiro de 2022, essas dúvidas se intensificaram com a recusa da Turquia em se juntar às sanções contra a Rússia e o desenvolvimento significativo de relações de energia e finanças com Moscou (gás descontado pago em rublos, adiantamento de royalties ligados à usina nuclear de Akkuyu). Esses fatores jogaram um papel nas eleições presidenciais turcas em 2023, e as transações de petróleo permitiram que a Rússia contornasse certas sanções ocidentais.
A guerra russa na Ucrânia pode escalar consideravelmente, e novos pontos de tensão podem envolver a Turquia devido à sua proximidade geográfica. Por exemplo, a necessidade de intensificar a proteção de navios de carga civis usados para exportações e importações ucranianas ou uma possível fragilização da Moldávia pela Rússia. Como resultado, a ambiguidade estratégica da Turquia se tornaria mais visível: ou teria que se associar claramente às operações da OTAN na Europa Oriental, ou abriramente se abster.
Numerosas táticas de pressão
A atitude da Rússia em relação à Turquia será cuidadosamente observada. Como foi o caso desde 2019, Moscou poderia continuar a impulsionar Ancara em direção a uma antagonismo político e militar duradoura com o resto da OTAN, alinhando-se com o desejo da Hungria de se diferenciar do resto da União Europeia. Os meios de pressão de Moscou sobre Ancara são numerosos: fornecimento de gás (preços, volumes, transporte lucrativo para o sudeste da Europa); processamento de petróleo bruto; novas ofertas de equipamento militar; oposição à cooperação turco-ucraniana em aviação militar; aceitação ou rejeição das ofertas de mediação do presidente Recep Tayyip Erdogan; e autorização ou proibição de operações turcas contra forças curdas no norte da Síria.
Contra o pano de fundo da guerra em escalada, a Turquia pode se encontrar dividida entre as pressões multifacetadas da Rússia e a solidariedade esperada dos outros países da OTAN, especialmente à medida que a segurança europeia e o apoio à Ucrânia estarão no centro das discussões no próximo encontro da OTAN em Washington em julho.
A posição política do presidente Erdogan será influenciada pelas eleições locais de 31 de março. Sem afetar seus poderes em níveis nacional e internacional, essa eleição, que infligiu um revés significativo a ele, abriu uma brecha em sua imagem de líder incontrastável. Essa perda de legitimidade popular tem duas consequências.
A primeira é uma reavaliação de opções de política interna à luz da rejeição espetacular das escolhas de Erdogan (controle do judiciário, da mídia e da sociedade civil e promoção da juventude piedosa). A manifestação das aspirações democráticas de uma maioria de turcos pode levar a mais autoritarismo, mas alguns esperam pela reabilitação do Estado de direito em conformidade com o Tratado do Atlântico Norte.
A segunda é a afirmação de seu status como uma potência a ser considerada na cena internacional: inúmeras conversas desde 31 de março com líderes amigáveis; condições estabelecidas para a nomeação de Mark Rutte [primeiro-ministro holandês] para o cargo de secretário-geral da OTAN; ênfase na luta contra o terrorismo que visa a PKK, mas também ao movimento Gülen [criado pelo pregador turco e oponente Fethullah Gülen]; e uma visita a Washington em 9 de maio. Esse jogo diplomático não é novo, mas o enfraquecimento político súbito do presidente complica.
Capacidade de ajustar certas políticas
No front militar, as forças turcas são esperadas para intensificar suas operações atuais contra a PKK no Iraque, ao mesmo tempo em que apertam o controle no norte da Síria e fazem um pedido urgente a Washington para parar de apoiar milícias curdas sírias em sua luta contra o ISIS. Um difícil processo de negociação é esperado entre Ancara e Washington, complicado pela escalada entre o Irã e Israel, que coloca a Turquia em uma posição extremamente desconfortável.
Por outro lado, em outras áreas nos últimos 10 meses, a Turquia demonstrou uma real capacidade de ajustar certas políticas: o fim do impasse de 20 meses sobre a adesão da Suécia à OTAN; o abandono da obstinação em reduzir as taxas de juros para combater a inflação, abrindo caminho para outras mudanças na política econômica.
O que segue é especulativo. Um cenário recentemente discutido pode envolver a eliminação dos mísseis S-400 e o retorno da indústria turca ao programa F-35. Outro, mais tênue, iniciaria um retorno ao status de Estado de direito que alinhará a Turquia com seus parceiros atlânticos e livrará das violações mais flagrantes dos direitos humanos, restaurando a confiança dos círculos econômicos ocidentais que trazem investimento e tecnologia. Tais ajustes pacificariam e fortaleceriam os laços essenciais entre Ancara e o mundo ocidental. A Turquia e a Europa veriam sua segurança consolidada.
Marc Pierini é um fellow sênior da Fundação Carnegie Europa e ex-embaixador da UE na Turquia (2006-2011).