Réplica: Golpe controlado aniquilou dissidência democrática na Turquia
Diretor de grupo ligado ao Hizmet responde a texto de chanceler turco sobre tentativa de golpe no país em 2016
O mundo é atormentado por líderes que implementam tomadas massivas de poder e se enraízam na governança após serem “eleitos”.
A chamada “cartilha dos autocratas” que eles usam inclui a ampliação do poder executivo às custas do Parlamento e das instituições governamentais, reprimindo a dissidência democrática, apelando ao populismo e ao nacionalismo, controlando a mídia e a informação, enriquecendo os empresários leais e subjugando outros para controlar o grande capital, manipulando secretamente as eleições, minando a independência judicial e abusando dos estados de emergência.
A cartilha é compartilhada, em diferentes graus, por líderes de países como Nicarágua, Venezuela, Hungria, Belarus, Rússia e Turquia, o que acrescentou um novo capítulo: um golpe “controlado” ou “de bandeira falsa”.
Em uma noite horrível há seis anos, no dia 15 de julho de 2016, um grupo de militares turcos foi mobilizado no que parecia ser uma tentativa de golpe para derrubar o governo, o que custou a vida de mais de 250 pessoas, e feriu mais de 2.100.
Os militares turcos executaram golpes militares e mudaram governos civis três vezes antes, mas este evento foi diferente. A extraordinária inépcia da execução da tentativa, combinada com a alegre recepção de Erdogan a ela, a declaração de um suposto autor sem qualquer investigação, expurgos massivos e ligeiros baseados em listas de expurgo pré-existentes levaram os observadores estrangeiros a acreditar que não se tratava de uma genuína tentativa de golpe militar, mas sim de um golpe “controlado” ou “de bandeira falsa”. David Weinberg, vice-presidente do The Jerusalem Institute for Strategy and Security, disse que o incidente trazia sinais contundentes de uma operação de falsa bandeira, ou seja, “uma operação secreta que parece ter sido realizada por outro grupo ou governo”.
A tentativa foi executada de forma notavelmente desajeitada, realizada “no dia errado da semana e na hora errada do dia”; os perpetradores “falharam” em “assumir rapidamente o controle de postos-chave de poder” e canais-chave de comunicação para Erdogan; eles “falharam” em capturar quaisquer funcionários significativos do governo; e eles “perderam oportunidades claras de retirar o próprio Erdogan do poder”.
Além disso, Weinberg observou que 99 generais que foram presos por envolvimento no golpe poderiam ter organizado um plano muito mais eficaz para derrubar o governo, se quisessem. Finalmente, Erdogan alegou que 9.000 policiais, 6.000 soldados, 30 governadores regionais e 50 funcionários públicos de alto escalão também estavam na tentativa, mas nenhuma dessas pessoas vazou isso para um informante da inteligência. Esta história totalmente inacreditável foi vendida ao público turco pela mídia controlada por Erdogan enquanto processava qualquer um que expressasse narrativas opostas com acusações de terrorismo.
Após usar o termo “golpe controlado” para descrever o incidente, o líder do CHP, o maior partido da oposição, foi espancado por capangas pró-Erdogan em plena luz do dia. O líder de outro partido, o pró-curdo HDP, Selahattin Demirtas, foi preso logo após declarar que Erdogan tinha pleno conhecimento prévio do incidente e que acrescentou elementos dramáticos para aumentar seu apelo à mídia.
Após silenciar narrativas opostas, Erdogan preencheu o vácuo com propaganda, culpando falsamente os simpatizantes do pregador turco Fethullah Gulen —que vive em exílio autoimposto nos Estados Unidos desde 1999. Gulen denunciou o golpe e seus perpetradores enquanto ele estava acontecendo e negou repetidamente qualquer envolvimento. Ele convidou Erdogan a dar permissão a um tribunal internacional independente e se comprometeu a cumprir com sua decisão. Erdogan nunca respondeu a este apelo.
Em vez disso, Erdogan —que chamou a tentativa de “um presente de Deus”— usou-a como desculpa para perseguir centenas de milhares de turcos civis inocentes, incluindo demitir, deter, prender, encarcerar, sequestrar e torturar pessoas simplesmente por associação com o pacífico movimento Hizmet, que promove a igualdade de acesso à educação de qualidade, o diálogo inter religioso, o respeito mútuo e a ajuda humanitária.
No processo político do movimento Hizmet, a chamada “evidência” apresentada ao tribunal para provar “culpa” foi um exemplo clássico de “culpa por associação”. Professores, médicos, jornalistas e donas de casa foram presos com base em critérios tais como se enviavam seus filhos a uma escola afiliada ao Hizmet, se assinavam um jornal ou revista afiliada ao Hizmet e se abriram uma conta em uma instituição financeira cujos fundadores eram participantes do Hizmet.
Os governos e observadores ocidentais não estavam convencidos da culpa que ele colocou nos simpatizantes de Gulen e do Hizmet. O governo dos Estados Unidos, apesar de pedir repetidamente, não recebeu nenhuma evidência da Turquia implicando Gulen e se recusou a extraditá-lo. Nem a comissão de investigação do Parlamento britânico. Tanto os chefes de inteligência dos EUA quanto os alemães declararam publicamente que as alegações de Erdogan contra Gulen não eram apoiadas por evidências.
O uso da cartilha por Erdogan começou antes de 2016, quando ele adquiriu o controle de organizações de mídia, enriqueceu empresários leais, e demitiu e prendeu promotores e juízes. Ao aprovar leis antiterroristas abusivas e de alcance excessivo, e ao controlar politicamente as nomeações judiciais, ele transformou o judiciário em um instrumento de punição política. O dia 15 de julho permitiu a Erdogan fazer mudanças constitucionais avassaladoras para tornar-se um presidente executivo com enormes poderes e sem responsabilização.
De 2014 a 2020, a classificação da Turquia caiu de “parcialmente livre” para “não livre” e o país tornou-se o pior perpetrador de repressão transnacional de acordo com a Freedom House. Os Grupos de Trabalho sobre Detenção Arbitrária e Desaparecimentos Forçados, das Nações Unidas, emitiram várias decisões contra os sequestros transnacionais da Turquia, declarando os como uma violação do direito internacional e dos direitos humanos fundamentais.
O Comitê para a Proteção dos Jornalistas e a Repórteres sem Fronteiras chamaram a Turquia, várias vezes, de o pior carcereiro de jornalistas do mundo. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos emitiu várias decisões declarando a prisão, por parte da Turquia, de dissidentes democráticos, como motivada politicamente. A Anistia Internacional concluiu em seu relatório nacional de 2021 que na Turquia “os políticos da oposição, jornalistas, defensores dos direitos humanos e outros enfrentaram investigações, processos e condenações sem fundamento”.
Mesmo mulheres grávidas e mulheres que acabaram de dar à luz não puderam escapar das acusações de motivação política. O ex-Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, protestou que a prisão de mulheres grávidas e de mulheres que acabaram de dar à luz é “simplesmente ultrajante, totalmente cruel e certamente não pode ter nada a ver com tornar o país mais seguro”.
Ao contrário do artigo de opinião do Ministro das Relações Exteriores, Mevlüt Çavusoglu, o 15 de julho não foi uma vitória da democracia para a Turquia, ao contrário, marcou a aceleração da tomada massiva de poder do presidente Erdogan, a aniquilação da dissidência democrática e o início de uma punição em massa para mais de um milhão de cidadãos pacíficos.
Fonte: Golpe controlado aniquilou dissidência democrática turca – 26/07/2022 – Mundo – Folha (uol.com.br)