PROMESSA DEMOCRÁTICA, ERDOGAN ACELEROU O TREM DO AUTORITARISMO
Presidente da Turquia transformou o país, mas desviou de curso ao abraçar o poder e conduzir seu governo para um ‘regime de um homem só’
Democracia em erosão
Os críticos do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, costumam lembrar de uma frase dita por ele em um comício no início de sua carreira: “A democracia é como um trem, você desce quando chega ao seu destino”. Para analistas sobre o país, após quase 20 anos imprimindo sua marca na política turca com seu partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), Erdogan não apenas desceu do trem, mas o trocou por uma locomotiva rumo ao autoritarismo.
O combustível com o qual Erdogan alimentou sua viagem autoritária foi uma denúncia de corrupção, que ele disse ser uma tentativa de golpe. A pesquisadora turca independente Begum Burak reconhece que Erdogan deu passos importantes para democratizar as relações civis-militares e entre Estado e religião. Em dezembro de 2013, porém, um escândalo de corrupção envolvendo mais de 60 membros do governo, um filho de Erdogan e um magnata da construção, mudou tudo.
O caso perseguiu o governo por meses, até ser rejeitado pela Promotoria em maio de 2014. A partir disso, segundo Burak, teve início um processo de enfraquecimento da democracia para que Erdogan se mantivesse no poder. “Em vez de investigar as denúncias de corrupção, o governo encobriu o evento e depois puniu os funcionários e os jornalistas que trataram do assunto”, lembra Burak.
Após a tentativa de golpe militar de 2016, que deixou 265 mortos, Ancara culpou pelo levante o Movimento Hizmet, um antigo aliado, passou a tratá-lo como organização terrorista e lançou um amplo expurgo contra ele. Segundo a agência de notícias EFE, até agora, as ondas de expurgos deixaram mais de 125 mil funcionários públicos e 6 mil acadêmicos desempregados, 204 meios de comunicação fechados e cerca de 234,4 mil passaportes cancelados. Um balanço apresentado na terça-feira pelo ministro da Defesa, Hulusi Akar, revela que 23.364 soldados foram expulsos do Exército.
No total, quase 300 mil pessoas foram presas em dezenas de milhares de operações policiais nos últimos cinco anos, enquanto 289 processos judiciais foram abertos. Em 288 deles, cerca de 3 mil pessoas pegaram perpétua e outras 4.189 estão cumprindo outras penas de prisão.
Em sua biografia sobre Erdogan (The New Sultan: Erdogan and the Crisis of Modern Turkey), Soner Cagaptay escreve que, ao demonizar e reprimir eleitores que provavelmente não votariam nele, o presidente agravou a polarização no país entre uma coalizão nacionalista de direita que acredita que a Turquia é o paraíso; e um grupo de esquerdistas, secularistas, liberais e curdos que se veem em um inferno. “Erdogan é o arquétipo dos políticos antielitistas, nacionalistas e conservadores em ascensão ao redor do mundo.”
Nem sempre foi assim. É inegável o papel transformador de Erdogan na Turquia nas últimas décadas. Em seus livros, Cagaptay diz que o presidente é um líder fundamental na história do país, ganhando mais de uma dúzia de eleições nacionais desde 2002, principalmente por apresentar forte crescimento econômico, aumentar o ganho das pessoas e melhorar os serviços sociais.
Seguindo a analogia do trem, em 2013 Erdogan chegou à estação que desembarcaria. Então primeiro-ministro da Turquia, seu governo comandou uma dura repressão aos protestos contra o estilo autoritário com o qual ele flertava, que começaram em maio daquele ano na Praça Taksim e se alastraram pelo país.
Os protestos foram desencadeados por um projeto arquitetônico em Gezi Park, uma pequena área verde na Praça Taksim, em Istambul. Ali, Erdogan queria reconstruir um quartel otomano que havia sido demolido em 1940, um shopping center e uma grande mesquita. Depois de oito anos e uma batalha cultural, a Praça Taksim tem hoje uma nova identidade.
Mas não foi só a praça que mudou. Segundo um estudo do Instituto Brookings (The rise and fall of liberal democracy in Turkey: Implications for the West), ainda que seja difícil determinar um data exata em que o autoritarismo de Erdogan ficou evidente, a brutal reação aos protestos espontâneos foi um crítico divisor de águas.
De lá para cá, aponta, as promessas iniciais de reforma deram lugar a políticas autoritárias e disfuncionais. As conquistas econômicas e democráticas dos primeiros anos do governo – um modelo admirado por países vizinhos que viveram a Primavera Árabe – diminuíram, a perseguição à imprensa, ao Judiciário e até mesmo a outros partidos políticos aumentaram e o crescimento econômico estagnou.
Segundo seus críticos, à medida que foi acumulando poder, ele foi se tornando intolerante e se afastando do Ocidente. O processo de adesão à União Europeia que ganhou fôlego nos primeiros anos de Erdogan paralisou e as relações com vizinhos e aliados tornaram-se mais azedas.
Na opinião do analista britânico Gareth Jenkins, do Instituto Cáucaso-Ásia Central (Istambul), os protestos de Gezi Park chamaram a atenção do mundo para a natureza do governo AKP, mas para ele, os abusos começaram após as eleições de julho de 2007, quando o partido conquistou uma vitória arrasadora. “(Naquele momento) Erdogan finalmente entendeu que não apenas estava no cargo, mas no poder”, diz Jenkins, que vive em Istambul desde 1989 e acompanhou de perto a ascensão do líder turco, entrevistando-o em várias ocasiões. “Erdogan sempre foi um clandestino no trem da democracia, fingindo ser um passageiro pagante e esperando até achar que era seguro descer.”
No ano seguinte aos protestos de Taksim, após 11 anos como primeiro-ministro, Erdogan apresentou-se como candidato à primeira eleição presidencial direta da Turquia e articulou uma agenda para mudar o sistema no país para presidencialismo. Erdogan foi eleito e depois reeleito em 2018 e a posição cerimonial do presidente passou a ter os maiores poderes da república.
“Posso dizer que, desde a transição para o regime presidencialista, sem o sistema de pesos e contrapesos, a Turquia está agora sob o ‘regime de um homem só’ e isso é uma ameaça à democracia liberal”, afirma Burak.
A tentativa de golpe militar – que na quinta-feira completou cinco anos – foi crucial para consolidar o poder do presidente. O governo rapidamente atribuiu a ação a oficiais e civis associados a Fethullah Gulen, líder espiritual e religioso do movimento transnacional Hizmet. Exilado nos EUA desde 1999, Gulen rechaçou as acusações.
Em artigo sobre os cinco anos da tentativa de golpe, o chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, afirma que membros da organização foram sujeitos a lavagem cerebral. “A Feto, uma organização terrorista secreta que se infiltrou nos órgãos do Estado, tentou destruir a democracia e derrubar o governo democraticamente eleito pela força”, afirmou, se referindo ao Movimento Hizmet.
Gulen foi inicialmente aliado do AKP – os dois compartilhavam a oposição à ideologia Kemalista que, entre outras definições, instituía o secularismo na Turquia. De origem pobre e islâmico devoto, Erdogan era um reflexo de uma parcela importante da população religiosa descontente com o movimento que proibia a associação entre religião e o exercício político. Quando ainda era prefeito de Istambul, Erdogan chegou a ser preso por recitar um poema islâmico.
Após um esforço conjunto bem-sucedido para fortalecer a agenda islâmica no país, o Movimento Gulenista (Hizmet) e o AKP romperam. Hoje, segundo Jenkins, o Movimento Gulenista (Hizmet) serve ao propósito de Erdogan de ter um eterno inimigo. “O Movimento Gulenista é um bode expiatório conveniente para todas as falhas de seu regime”, afirma Jenkins.
A perseguição ao movimento não poupou os turcos que vivem no Brasil, um deles é Mustafa Goktepe, empresário e presidente do Instituto pelo Diálogo Intercultural (antigo Centro Cultural Brasil-Turquia), ligado ao Hizmet. Ele e seu sócio Ali Sipahi foram alvos de um pedido de extradição de Ancara em 2019 sob a acusação de financiarem o terrorismo. Sipahi passou 34 dias na prisão. Para evitar o mesmo destino,Goktepe ficou nos EUA, onde estava em viagem, até o Supremo Tribunal Federal negaro pedido de extradição de Sipahi, em agosto daquele ano.
“Moro aqui há 17 anos, sou muçulmano praticante e na Turquia, pessoas como eu estavam cansadas das várias imposições que não representavam nossa cultura. Erdogan veio como um salva-vidas, despertando grande ânimo nas pessoas, incluindo eu. Mas as coisas mudaram, ele mudou também. Não foi de um dia para o outro. A gente não percebeu”, conta Goktepe, que agora não pode visitar a família na Turquia e se entristece por não ter podido se despedir, nem cuidar do enterro do pai no ano passado. “O que temos hoje na Turquia é uma democracia autoritária.”
ENTREVISTA
FETHULLAH GULEN, CLÉRIGO MUÇULMANO LÍDER DO MOVIMENTO HIZMET
‘A corrupção obrigou Erdogan a escolher entre a democracia e o autoritarismo’
Exilado e recluso nos EUA, o clérigo muçulmano moderado Fethullah Gülen, líder do Movimento Hizmet, afirma que seu apoio no início do governo de Recep Tayyip Erdogan nunca foi incondicional e os dois se afastaram depois que o presidente começou a estabelecer o ‘regime de um homem só’.
O Movimento Hizmet apoiou o governo AKP em seu início e hoje é associado à oposição. A Turquia seria diferente hoje se não tivesse havido essa divisão?
Não somos a principal oposição ao AKP hoje, como não éramos os únicos a apoiar o partido quando ele surgiu com promessas de democracia, liberdade e justiça. Naquele primeiro período, o AKP recebeu apoio de muitos segmentos da sociedade na Turquia, de curdos a liberais, de minorias religiosas e até de alguns esquerdistas. Havia muitos apoiadores no exterior também, estadistas e parlamentares na Europa e na América. Muitos pensaram que deveriam dar uma chance ao AKP. O apoio do Movimento Hizmet ao partido nunca foi incondicional. Pelo contrário, era claramente condicionado. Esses termos e condições visavam a combater a corrupção, a pobreza e as proibições, fortalecer a democracia na Turquia, desenvolver as liberdades e lutar pela adesão da Turquia à União Europeia, conforme o AKP havia prometido em seu surgimento.
Qual o motivo do rompimento?
Em troca do nosso apoio, não lhes pedimos cargos no governo ou cadeiras no Parlamento. Paramos de apoiá-los quando deixaram para atrás esses princípios e seguiram na direção do governo de um homem só. Nossa união temporária, se pode ser chamada de união, poderia ter continuado se eles mantivessem sua palavra sobre democracia, justiça e direitos humanos. Já que, se eles tivessem se mantido fiéis às suas promessas, os problemas vividos hoje não teriam acontecido, talvez a Turquia tivesse entrado para a União Europeia, desenvolvido a sua democracia e se tornado um país que todos apontariam como exemplo.
Como Erdogan e o AKP foram de reformistas a autoritários, na sua visão?
Talvez Erdogan tivesse essa intenção desde o início, mas não podemos afirmar isso, já que sabemos o que se passa na mente das outras pessoas. Nós acreditamos em suas palavras e nas daqueles ao seu redor, que falavam em democracia. Mas testemunhamos que ele não cumpriu suas promessas e, depois de um tempo, liquidou as pessoas mais razoáveis ao seu redor e estabeleceu o poder de um homem só. De certa forma, isso pode ser visto como um envenenamento pelo poder. Por outro lado, a corrupção, na qual depois percebemos que Erdogan e seus parentes estavam envolvidos, obrigou-o a escolher entre a democracia e o autoritarismo. Em um Estado de direito democrático, ele teria de responder por sua corrupção. Mas, em vez de prestar contas, ele preferiu derrubar a democracia e a ordem jurídica e estabelecer um regime de um homem só. Enquanto ele fazia isso, grande parte da sociedade ficou em silêncio. Por trás desse silêncio, devemos perceber as atrocidades cometidas pelo Estado aos praticantes da religião em períodos anteriores, além da não assimilação da cultura da democracia.
Como a Turquia pode se tornar uma democracia plena, na sua opinião? Parece difícil para a
Turquia restaurar sua democracia destruída no curto prazo. Para que isso ocorra, os cidadãos precisam desenvolver sua consciência democrática e acabar, por meios democráticos, com a opressão. Os aliados da União Europeia, OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) e Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), aos quais a Turquia está vinculada por acordos, também precisam apoiar o povo turco, insistindo no cumprimento dos requisitos desses pactos pelo Estado da Turquia. Não sei se isso vai acontecer ou não, mas eu nunca perdi as esperanças em Deus, O Todo-Poderoso. Espero que as mudanças aconteçam logo.