Como refugiados viram moeda de troca entre a Turquia e a Europa
Pelo menos 24 mil imigrantes tentaram cruzar a fronteira da Turquia com a Grécia entre sábado (29) e terça-feira (3), depois que o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, ameaçou mandar para a Europa os 3,7 milhões de refugiados que seu país abriga.
Desde então, a polícia grega vem repelindo imigrantes na fronteira com a Turquia, com disparos de balas de borracha e de munição letal, além de lançar bombas de gás lacrimogêneo. A guarda-costeira foi filmada usando lanças para furar e afundar botes de imigrantes, além de disparar contra embarcações que se aproximam da costa da Grécia em busca de ajuda.
A violência também acontece do lado turco da fronteira, onde as forças policiais disparam contra imigrantes que fazem parte de uma concentração de pelo menos 10 mil pessoas que passaram a viver no local. A onda de violência e confusão deixou pelo menos um morto, segundo autoridades turcas, e vem provocando até mesmo escaramuças entre as polícias dos dois lados da fronteira.
A tensão reflete o temor europeu de que uma entrada massiva de imigrantes estrangeiros vindos da Turquia repita a crise política ocorrida em 2016, quando um afluxo semelhante terminou por dar fôlego a líderes de extrema direita. Desde então, esses políticos experimentam um crescimento inédito no pós-Guerra (1945), testando as instituições democráticas do continente.
Um sofrimento calculado
A ameaça de Erdogan, de liberar os imigrantes, é parte de uma barganha política internacional. Desde setembro de 2019, ele diz que vai “abrir os portões” para que esses estrangeiros sigam o caminho até as cidades europeias, que seriam seus destinos reais caso não estivessem na Turquia.
Na última crise, em 2016, as potências europeias prometeram US$ 6 milhões ao governo turco para que ele funcionasse como um anteparo à onda migratória que vem principalmente da Síria – país que está desde 2011 numa guerra que já provocou o deslocamento forçado de 13 milhões de pessoas.
Além do pagamento integral da ajuda em dinheiro, Erdogan cobra de seus parceiros da União Europeia respaldo diplomático para manter suas forças militares no noroeste da Síria, onde 33 militares turcos foram mortos em 27 de fevereiro por um bombardeio de forças sírias e russas.
A barganha turca transformou milhares de civis em moeda de troca. Pressionados pelo risco de um novo afluxo de refugiados, líderes de países como a França, a Alemanha e a Itália veem-se obrigados a fazer concessões a Erdogan, mesmo que isso os coloque numa posição delicada em relação à Rússia.
“Se os países europeus querem resolver o problema, eles devem oferecer seu apoio à resolução das questões políticas e humanitárias turcas na síria”
Recep Tayyip Erdogan
presidente da Turquia, em discurso em Ankara, em 3 de março de 2010
“A União Europeia não cederá a chantagens. As fronteiras da Grécia e do Espaço Schengen [espaço comum de circulação de pessoas dentro da União Europeia] estão fechadas e nós faremos de tudo para que siga assim. Que fique bem claro”
Jean-Yves Le Drian
ministro das Relações Exteriores da França, em discurso na Assembleia Nacional, no dia 4 de março de 2020
O reflexo na política interna
Erdogan toca num ponto sensível da política europeia. O discurso contra os imigrantes tem sido o principal motor do crescimento da extrema direita populista.
Os atuais governos europeus têm que se equilibrar entre os princípios humanitários de acolhida a refugiados que fogem de guerras e perseguições políticas, e o alto custo que essa acolhida pode representar em termos de votos.
Na França, a extrema direita cresce, capitaneada por Marine Le Pen, que já conseguiu chegar ao segundo turno nas eleições presidenciais de 2017 e que agora diz que a Europa está com uma “ameaça de invasão” às suas portas.
Algo semelhante ocorre na Alemanha, onde a atual chanceler, Angela Merkel, ainda paga um pesado custo político por ter flexibilizado a política de acolhida a refugiados em 2015 e 2016. No ano seguinte, em 2017, a sigla de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha) conseguiu pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, eleger uma bancada no Parlamento nacional.
João Paulo Charleaux é repórter especial do Nexo e escreve de Paris
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/09/Como-refugiados-viram-moeda-de-troca-entre-a-Turquia-e-a-Europa