Inimigo político na Turquia, Enes Kanter diz: “Recebo ameaça de morte quase todos os dias”
Jogador teve passaporte cancelado, foi acusado de terrorismo e por causa de suas críticas ao presidente do país, seu pai foi preso em Istambul. Conheça um pouco da tumultuada vida do pivô
Indonésia, 19 de maio de 2017, 2:30 da manha. Enes Kanter, atualmente no Portland Trail Blazers, acorda assustado com as batidas na porta de seu quarto de hotel. Era um de seus empresários, Hilmi Cinar. Com a voz desesperada, ele pede para que o pivô turco arrume a mala depressa para que eles possam pegar o primeiro voo para Cingapura, ainda na madrugada. A explicação foi curta.
– O governo turco ligou para a embaixada, e disseram que você era perigoso. O serviço secreto do país está lá na escola te procurando. Precisamos ir agora.
No dia anterior, Enes, que nasceu na Suíça, mas se mudou ainda pequeno para Istambul com os pais, que são turcos, havia dado uma clínica de basquete em Jacarta, um compromisso de sua fundação, a Enes Kanter Light Foundation, entidade com foco em crianças carentes, combate à fome e desenvolvimento da educação e esporte, ações que ele sempre aproveita para fazer no período de férias na NBA. Em 2016, até o Brasil esteve em sua rota, quando visitou São Paulo e Rio de Janeiro, pouco antes dos Jogos Olímpicos. Mas a parada na Indonésia foi o começo de um pesadelo. Era o primeiro sinal de que seu posicionamento político iria afetá-lo seriamente.
No dia anterior, Enes, que nasceu na Suíça, mas se mudou ainda pequeno para Istambul com os pais, que são turcos, havia dado uma clínica de basquete em Jacarta, um compromisso de sua fundação, a Enes Kanter Light Foundation, entidade com foco em crianças carentes, combate à fome e desenvolvimento da educação e esporte, ações que ele sempre aproveita para fazer no período de férias na NBA. Em 2016, até o Brasil esteve em sua rota, quando visitou São Paulo e Rio de Janeiro, pouco antes dos Jogos Olímpicos. Mas a parada na Indonésia foi o começo de um pesadelo. Era o primeiro sinal de que seu posicionamento político iria afetá-lo seriamente.
– Eu sabia que se eles me encontrassem, eles não iriam apenas querer conversar. Tivemos sorte. Pegamos um voo 5:30 da manhã e fugimos do país, de volta para Cingapura. Assim que pousei, voei para a Romênia, onde tinha um outro evento. Assim que entreguei meu passaporte para a moça da imigração, ela me disse que ele seria cancelado, sem me dar nenhuma outra explicação – relembra o jogador.
Mas por que um jogador da NBA, bem sucedido, famoso, atuando por uma das franquias mais valiosas do mundo, estaria sendo perseguido por autoridades internacionais? Enes Kanter está há 10 anos nos Estados Unidos e, neste período, fez um grande amigo – o pregador Fethullah Gulen, que vive exilado na Pensilvânia, e é acusado pelas autoridades turcas de ser um dos mentores da tentativa de golpe em julho de 2016.
– Nesta noite, no dia 15 de julho de 2016, eu estava com ele, na mesma hora, na mesma sala, quando um assistente veio com a notícia do golpe. Todos nós ficamos chocados, eu fiquei chocado! E eu me lembro de ver Mr. Gulen sentar para rezar por nosso país. E aí, logo após essa tentativa de golpe, o presidente (Recep Tayyip Erdogan) culpa o movimento. E cara, eu estava lá com ele no momento do golpe ! Eu vi o que ele estava fazendo com os meus próprios olhos, não tinha a menor possibilidade de ele ser o responsável por isso. Foi aí, a partir desse dia, que eu comecei a usar a minha plataforma para ser uma voz ativa pelas pessoas inocentes que não tem voz. Foi nesse dia que eu tomei a decisão de defender as pessoas inocentes – conta o jogador.
Muhammed Fethullah Gulen é considerado por seus seguidores um líder espiritual, e é descrito muitas vezes com um dos homens mais poderosos da Turquia. Seu movimento, conhecido como HIZMET, que significa serviço em turco, tem milhões de integrantes, e busca promover a educação e a tolerância religiosa, através da construção de grupos sociais.
Para o governo entretanto, o “Movimento Gulen” é visto como uma organização terrorista, uma ameaça ao atual presidente, que desde a data da intentona promove uma caça a qualquer pessoa minimamente simpatizante à causa.
– Eu acho engraçado porque de fato a única coisa que eu aterrorizo é o aro da cesta de basquete. Isso é muito maluco, eu jogo na NBA, falo sobre direitos humanos, sobre liberdade de expressão, sobre democracia. Então na Turquia, se você diz que é contra o regime, você é terrorista. O que eu falo é sobre 17 mil mulheres presas neste momento pedindo ajuda, com mais centenas de bebes. Sou terrorista porque falo sobre isso? Até meus companheiros de time gargalham quando o governo me chama de terrorista – explica.
Apoiar o movimento significou perder até a própria família. Assim que fez seu primeiro post criticando Erdogan, imediatamente seu pai, Mehmet Kanter, escreveu em um jornal pró-governo que seu filho estava “hipnotizado” por Gulen e que assim era considerado um desonrado.
– Deixa eu falar sobre esse dia. A polícia turca foi até a minha casa, vasculharam tudo e levaram todos os eletrônicos. Levaram computadores, telefones, laptops. Eles queriam saber se minha família ainda mantinha contato comigo, através de uma mensagem de texto ou uma ligação e, se encontrassem, todos iriam para a cadeia. E foi aí que meu pai se viu obrigado a dar uma entrevista falando aquelas coisas sobre mim, para se sentirem mais seguros.
Nesta mesma ação, o passaporte de todos os familiares foi confiscado, para que não possam deixar o país. A verdade é que Enes não vê a família desde 2015, e impedido de ter contato, aos poucos está esquecendo a voz e o rosto de seus pais. Para ter notícias, ele costuma a mandar mensagem para um dos irmão, que joga basquete na Europa.
– Erdogan é um ditador. Se você olhar o que ele está fazendo extraoficialmente, mais de 80 mil pessoas estão presas e mais de 300 escolas e universidades estão fechadas, e muitas pessoas perderam seus empregos. Um deles é o meu pai. Ele era professor de genética e há dois anos foi demitido só porque é meu pai. E agora ele não pode mais conseguir nenhum trabalho.
Mehmet Kanter chegou a ser preso por sete dias em 2016 mas foi solto com a ajuda do governo americano. Porém, em março deste ano, ele vai ser julgado e pode pegar até 15 anos de prisão. Por medo, Enes, à época no New York Knicks, decidiu não acompanhar o time em um jogo realizado em Londres, contra o Washington Wizards, no último dia 17 de janeiro.
– O governo turco é muito famoso por perseguir seus opositores. E caçar essas pessoas que falam contra eles. Então eu apenas não queria arriscar a minha vida. Quando meu time estava com o avião no ar, eles colocaram meu nome no sistema vermelho da Interpol. Se eu estivesse lá, assim que eu pousasse, seria preso.
As postagens de Enes também renderam milhares de ameaças de morte.
– Quando eu comecei a falar sobre todos esses problemas, eu passei a receber centenas de ameaças de morte quase toda semana. É por isso que é difícil, porque me afeta, afeta a minha família e a minha carreira. Mesmo assim, quando eu olho para trás, tudo isso vale a pena, porque estou fazendo por pessoas inocentes. Eu recebo todas essas ameaças? Sim. Por dois anos e meio, quase que todo dia, por rede social, de todo jeito. Eu escuto “Cuidado por onde anda, porque você sabe, a gente ta chegando para te matar”. E essas mensagens vêm de apoiadores malucos do presidente. As pessoas me perguntam se eu levo a sério. Claro que eu levo a sério! Eu preciso levar a sério, são ameaças de morte. Por isso que eu e meu agente resolvemos procurar o FBI e o departamento de polícia para que eles tivessem conhecimento do que está rolando. Mas chegou em um ponto que eu recebo tantas que eu, tipo, não posso mais me dar o trabalho de tentar rastreá-las, porque são muitas.
No dia 25 de janeiro deste ano, Enes Kanter postou mais uma foto em suas redes sociais. Na imagem, ele aparece ao fundo rodeado pelos companheiros do New York Knicks – do técnico ao massagista, com uma legenda simples. “Família”. Uma publicação comum para qualquer pessoa, mas não para o pivô turco.
– As pessoas me chamam de sem-teto. E realmente, eu não tenho lar. Então eu chamo os Estados Unidos de lar, porque depois de tudo o que aconteceu comigo, eu tenho em mente tudo o que o país fez por mim. E aí, quer saber? Eu paro, penso e não fico mais triste.
Enquanto os Knicks jogavam em Londres, Enes aproveitou para encontrar senadores americanos. O jogador ainda busca ajuda para resolver sua situação, mas acredita que só viverá em paz quando tiver o direito de se naturalizar americano, o que poderá acontecer a partir de 2021.
Até lá, o pivô só pensa em realizar seus sonhos. Aos 26 anos, ele pretende continuar a ser uma voz importante para conscientizar as pessoas sobre as injustiças ao redor do mundo. Quer ser campeão da NBA. O mais perto que chegou disso foi e 2016, quando atuava pelo Oklahoma City Thunder – disputou as finais de conferência contra o Golden State Warriors, mas seu time acabou derrotado.
Outro desejo que está sempre em seus pensamentos é mais singelo. Um dia voltar a ver a família e poder almoçar a comida de sua mãe. Qualquer comida típica turca preparada na cozinha de sua antiga casa. Para ele, enfim, voltar a ser feliz.